É clássico dito taoísta o conceito de que aquilo que buscamos preservar ou possuir com todas as forças é naturalmente aquilo que haveremos de perder. Se no quatro de ouros temos toda uma necessidade de autopreservação, da busca pela segurança e estabilidade, aqui vemos tudo despedaçar frente ao fato de que a vida não aceita a rigidez. E o naipe de ouros representando tudo quanto é matéria demonstra as mais plurais formas de perder: a miséria, a doença, a fraqueza, a morte, a fome.
Acho importante entendermos que os cincos de todos os naipes representam perdas e se ouros é aquilo que tem substância, corporalidade, se é o mais físico dos naipes, tanto haverá de representar posses quanto o próprio conceito de saúde física. Mas diferente de espadas, copas e paus onde o que se perde é acima de tudo um conceito abstrato, psicológico (derrota, melancolia, descontrole), aqui temos as perdas que podemos conferir com os próprios olhos.
Sob certa ótica, talvez este seja o pior dos cincos porque aqui as coisas são extremamente palpáveis. Quando a barriga ronca não tem psicólogo que resolva. Quantas são as pessoas em situação de rua que ignoramos todos os dias? Quando o dinheiro mais sai do que entra no bolso, e aí? Mas o pior mesmo é aquela doença crônica que assola ou a morte, essa não tem cura mesmo.
O 5 de ouros entretanto é um refletir nossa própria mortalidade, estar consciente que entramos e saímos do mundo igualmente despidos, sem adornos ou ganhos. O maior magnata do mundo e o mais miserável dos homens serão iguais quando seus crânios forem observados por um desconhecido. Toda a vida é um processo de desprendimento, de saber que não viemos para ficar, que fazemos nosso papel nesta shakespeariana peça. E cada machucado, cada fome, cada miséria que nos beija na boca é um tomar consciência que nem só de pão vive o homem. Há quem diga que só os que tem o mínimo entendimento do que é miséria podem realmente ser iluminados.
Vos deixo a pensar sobre Buda, Cristo, Lao-tsé. O 5 de ouros nos ensina mais do que a perder ou aceitar a perda, mas a abraçar um bocado o que é a real humildade. Que possamos ser humildes, gentis, que tenhamos consciência que nem sempre teremos tudo que queremos. E que na desgraça toda criatura se torna igualmente sofrida.
Vivemos em uma sociedade ainda marcada por certas visões que colocam a ideia de matéria-corpo-carne como algo errado e que deve ser evitado. É a velha tônica do pecado. E assim podemos ouvir que o dinheiro é o maior dos males, apelar para os sentidos nos leva a autodestruição, a carne é o caminho para a perdição. Mas tudo que é matéria realmente pende ao mal? Não seria isso um reducionismo, um olhar demasiado dualista acerca da realidade?
A matéria faz parte do mundo. O mundo é matéria. É forma e conteúdo. Uma maçã é por si mesma um pecado capital? Há estudiosos de teologia que acreditam que o próprio mundo no qual vivemos era o Éden, que o que mudou em si não foi o lugar do paraíso, mas a consciência dos homens. O taoísmo diz que o mundo é perfeito, quem tentar consertá-lo estaria só rumando a destruí-lo. A matéria é de todo um crime?
O naipe de ouros nos ensina as mais plurais formas de se vivenciar o material. Podemos buscar seu potencial, viver suas trocas, aprimorá-lo, estrutura-lo ou até mesmo desgastar aquilo que usufruímos. A matéria não é só um pecado a ser podado pela vivência do sagrado mas também parte da criação divina. Os cabalistas dizem que em nada adianta se elevar a esferas e emanações mais sutis se nesse processo abandonamos aquilo que está conosco desde o começo. Uma semente está fincada na terra, não pode alcançar o céu e largar o solo.
O seis de ouros é talvez uma das atitudes mais refinadas para com o próprio entendimento do que é físico e concreto. O corpo pode ser um templo, pois é nele que temos a morada espiritual. Moedas podem ser não só um sistema de trocas, mas também de colaborações. Às vezes plantar uma árvore pode ser feito sem o objetivo de ganhar algo com isso, mas de fazer uma atitude que pode ter benefícios coletivos. Fazer o bem sem olhar a quem, dar sem pensar no que se ganha, não seria isso a matéria sacralizada?
Aqui temos a carne, o dinheiro, o material como atitude de elevação. Se na matéria não houvesse real bem, não estaríamos fadados a ruína absoluta, ao mais pleno vazio? Se minha ações materiais não tem qualquer valor que seja, mais valeria me entregar ao mais puro cinismo, não me importando nem comigo nem com o próximo?
Mas ainda assim tentamos ajudar a quem amamos. Damos por vezes aquilo que sequer temos para ajudar quem mais precisa. Tentamos fazer nosso melhor, mesmo sabendo que um dia pereceremos. E se nisso não há benevolência, este irmanar-se na consciência de nossa própria materialidade, então existe bem onde? Ora, que tenhamos consciência que o paraíso, se existe, deve começar no chão onde pisamos.
“Em verdade vos digo que esta pobre viúva deitou mais do que todos os que deitaram na arca do tesouro; porque todos ali deitaram do que lhes sobejava, mas esta, da sua pobreza, deitou tudo o que tinha, todo o seu sustento.” (Marcos 12: 43-44)
Tempo de colheita; pra alguns, plantio. Essa é uma das cartas cujo significado transita muito dependendo da escola. A francesa observa como uma carta de ganhos, de sucesso financeiro, realização. A inglesa já considera uma carta de espera, estagnação, em certos casos, literalmente fracasso. O que cabe a mim talvez seja dizer que, não importa a escola de interpretação, no fim das contas algo foi plantado, cabe a nós colher o que nos é devido. Você está sendo realmente digno de colher alguma coisa ou a única coisa que você anda arando é o vento?
Como a gente pode esperar ganhos sem ações? Não está lá no Gênesis que “com o suor do teu rosto comerás o teu pão”? Nem todo mundo segue isso a risca, mas é certo que existe uma verdade e uma certa honestidade nessas palavras. Podemos ter as mais diversas artimanhas, os mais variados truques para evitar trabalhar o plantio, mas não existe pão mais suculento do que aquele que fizemos do nosso suor e empenho?
Vivemos numa sociedade de muita artificialidade. O empenho, o trabalho duro porém frutificante parece ter se tornado algo fútil, quiçá tolo. Achamos preferível comprar um bolo do que fazê-lo, ir num restaurante ao invés de comer uma arroz-com-feijão caseiro. Não é um crime ser moderno, mas parece que nisso de queremos tudo no fácil, a gente perde um bocado esse sentimento humilde e simples do fazer por conta própria, do arar, do colher o trigo por conta própria, do plantar uma árvore. A gente se esvazia do natural, da consciência da própria terra.
Será que é tão feio, tão nojento assim colocar a mão no solo úmido? Por que quando crianças gostávamos de brincar na lama e agora temos repulsa? Se a comida de vó era tão boa, por que a gente não tenta fazer um bolo por conta própria? Acho que a grande questão é tentar ser um bocado menos artificial, ser mais prático, realmente botar a mão na terra caso você queira colher as batatas. Me deu vontade de comer bolo, com licença, o texto termina aqui e a colheita começa agora.
Por vezes a melhor a coisa que podemos fazer é simplesmente fazer alguma coisa. Colocar as mãos na massa e se empenhar a mover as coisas, cumprir seu ofício por mais exaustivo que seja. Um trabalho bem efetuado pode se tornar extremamente espontâneo, como engrenagens que movem a si mesmas no movimento de casa uma. Às vezes ao contemplar este arcano eu vejo as engrenagens. Cada moeda move outra moeda.
Há quem veja o trabalho como uma cruz, um preço a se pagar do pecado original. Com o suor do rosto farás teu pão. O trabalho quando feito pensando em motivos realmente deve ser um suplício. Trabalhar sempre esperando o pão mas não ver a nutrição do espírito que pode haver no processo de cumprir seu dever.
“Se não pensamos na colheita enquanto aramos, nem nos resultados do campo quando o preparamos, então será favorável empreender algo.” – diz a segunda linha do hexagrama 25 no Clássico das Mutações. Essa sentença me faz pensar em como deve ser qualquer trabalho: deve ser um processo em si mesmo, uma atitude despretensiosa, onde se faz o que se faz pelo simples fazer. Os frutos veem espontaneamente.
Mas quando a gente contempla essa lâmina e vê essas oito moedas e a cruz de guirlanda de flores oculta em seu centro, só pensamos no trabalho amargo, na repetição, no acreditar que toda tarefa é uma maldição. Mas o trabalho é movimento, o empenho, o esforço são ações em si mesmas. Mover os pés pra caminhar é um trabalho. Treinar um som no piano é também ofício. O prazer quando em si mesmo, num movimento repetido de gestos, não seria isso também um empenho, um botar a mão na massa?
A ideia é trabalhar por trabalhar, fazer por fazer, não pensar muito nos resultados mas sim no processo, no contínuo do movimento. A tarefa é fazer o que você faz, seja lá o que fazes, com gosto, com desejo. E então movimentar as engrenagens de dentro. Que contentamento estranho pode haver no movimento contínuo e prudente.