"Assim, a característica externa daqueles que escolhem a outra via mística, a do Deus do Amor, é que eles têm o "dom das lágrimas". Isso provém da essência de sua experiência mística. A sua união com o Divino não é absorção de seu ser pelo Ser Divino, mas experiência do Sopro do Amor Divino, da Iluminação pelo Amor Divino e do Calor do Amor Divino, e a alma do recipiendário experimenta algo tão miraculoso que... chora." - Meditação sobre os 22 arcanos maiores, A Papisa.
Acho que minha repulsa para com A Papisa se fundamentou no espelhamento do que eu fui. Todo esse silêncio, esses desejos engavetados na face mármore e Mona Lisa, eu a vejo e rememoro uma adolescência refugiado em livros, desejos reprimidos. O silêncio impávido das vezes que fugia da sala de aula, me sentava numa escada e olhava pras paredes brancas, elaborando um suicídio que nunca sucedeu. E dias de lágrimas, angústia, muitas vezes escondida, evitada.
Juventude no corpo de um velho decrépito, repleto de marés e luas, eu sentia demais e escondia tudo. Eu fui analfabeto na língua do flerte, até hoje desconhecido no enigma do meu corpo. Quantas vezes quis dizer algo e guardei, talvez por medo ou quem sabe o mistério fosse mais importante que a minha própria vida. Carregar o coração como quem carrega uma chave mas jamais abrir portão sequer.
Foram vinte anos que eu levei pra me declarar a alguém, temo que sejam vinte para dizer um eu te amo. Eu por mim diria agora, não posso contudo. Não posso. A Sacerdotisa me mostra o livro e diz grifado em itálico: não. Aceito calado e desprezo sua coroa tríplice, suas vestes corpo fechado. O Pendurado quando se cala é porque simplesmente não existem opções. Mas no caso dela, não. É porque o segredo é mais importante que qualquer outra coisa. Segredo-sagrado.
De suma importância o devaneio, a intuição lunar, a angústia calada. Deito na minha cama de noite e me enrosco nos cobertores pretendendo sentir o contato humano. Aperto a face contra os travesseiros e tento forçar um choro que não sai. Com ela só as lágrimas saem, jamais o grito. Jamais dizer o que precisa ser dito, leia o livro, leia o livro.
Quantos clássicos eu devo ter lido na minha adolescência? Dom Casmurro aos quinze, Crime e Castigo aos dezoito, meu coração jamais lido. Ela me ensinou os clássicos para que eu soubesse escrever. Foi lá pela idade de ler Machado que eu comecei a escrever poesia, essa forma de dizer sem dizer, de colocar as coisas no livro da vida: gritar calado. Então falei de como o ensino médio era horrendo, escrevi sobre minhas crises, sobre as tantas pessoas que amei sem dizer sequer um i. Está no livro, sempre no livro.
Os textos falam por mim, ao menos algo bom A Papisa me ensinou. Sua didática me fez calar mais que ouvir quando necessário. Me fez calar também quando era preciso falar. E hoje, com a face impávida te observo e calo, não quero incomodar. Está no livro o quanto te desejo, no livro o quanto adoraria dizer que te amo. Mas não posso, dizem as entrelinhas do livro. E me calo, sorriso frio, lua cheia.
Se eu desprezei A Papisa é porque ela me ensinou a sofrer calado. Me ensinou que toda noite de lua cheia é um bom dia pra me depredar em lágrimas. E pensar em quem amo sem jamais dizer que amo. Amedronta abrir o coração para outro coração. Meu coração segredo, o outro ferida. Não quero ferir quem já sofre uma dor. E calo, - e quase-choro -, calo.
Mas aprendi com ela o quanto esse silêncio também é benção. E quantos milagres se fazem sem abrir a boca. Mais do que saber-ousar-querer: necessário calar.