Duas moedas rodopiam: o que se ganha, o que se perde? Tudo na matéria é troca, escambo. As sociedades primitivas começaram nos processos de que se duas ou mais pessoas tem algo que serve para o outro e vice-versa, é válido uma troca. Pena que a gente não continuou nisso. Joãozinho que tinha maçãs e Zézinho que tinha bananas decidiram criar o dinheiro, outro processo de troca. Eu tenho maçãs, eu te oferto elas por cinco moedas. Ou por dez. Ou por quarenta. Ou por mil. Porque eu tenho as maçãs, então você tem que me pagar por elas.
Dois de ouros é sempre esse negociador infinito, o dinheiro indo e vindo na mão das pessoas, ficando marcado por digitais, por crimes, por calotes, por uma infinidade de coisas e ações justas ou inconsequentes. Sua grande volatilidade não reside no fato do dinheiro em si ser instável, mas no humano ser. Dinheiro é papel, o valor quem criamos fomos nós na nossa mania de simbolizar tudo. Somos um animal simbólico. Pena termos criado um símbolo tão cruel.
Símbolo de riqueza pra alguns, pobreza para muitos. Mas o dois de ouros é amoral: o que temos acima de tudo é a troca e o ganho ou perda que decorre disso. O que tens que eu posso te pagar com meu dinheiro suado? O que eu tenho que podes me dar algo em troca? Trocas monetárias, materiais, físicas. Trocar uma maçã por uma moeda, uma moeda por outra moeda, uma maçã pelo próprio corpo, o corpo pelo dinheiro. É triste a corrupção que criamos na troca. Desaprendemos a trocar as coisas por coisas de igual valor. Até as vidas hoje em dia tem um valor.
Nascemos e tudo que nos sustenta tem um preço. As primeiras roupas, as primeiras mamadeiras, as comidinhas, o bebê-conforto, as idas aos médicos, os primeiros aprendizados, nossas vontades infantis, nossa puberdade criteriosa. Se contabilizássemos tudo que nossos pais pagaram pra gente nessa vida, veríamos que toda vida tem um preço. E isso é cruel, e isso é humano demais. A carne mais barata do mercado, todo mundo já ouviu falar qual é. Quando um miserável morre, quem chora por ele? Os párias, os terceiro-mundanos, aqueles que não podem ser validados na troca de uma matéria por outra, quem lhes dá um enterro digno?
Se na vida tudo tem valor, quando foi que tornamos a humanidade tão desvalorizada. A grande questão desse arcano não é troca justa. É troca. Troca por qualquer coisa. O que eu quero pelo que você quer. E acabou. Talvez nessa reflexão toda, era bom nesses dias aprendermos até que ponto temos sido justos naquilo a que propomos cambiar: temos trocado ouro por espelhos? Entregado mais do que realmente recebemos? Estes são meus dois centavos, rodopiando por entre o arcano dos meus dedos. O que você me daria pelas minhas palavras?
Uma das melhores alusões ao Dez de Espadas que já presenciei não veio de um tarólogo mas sim de um escritor. Em certa parte do seu livro O Castelo dos Destinos Cruzados, o autor Ítalo Calvino compara a carta a um campo de batalha. Numa guerra, tudo é conflito, espadas e mais espadas que se dispõem por entre couraças e corpos e ideias: um ideal sendo defendido até seu amargo fim. Toda guerra é um amontoado de planos, de fúrias, de lutas e lutas e morte. Podemos sobreviver? Sim. Mas a que custo?
Paul Marteau no seu livro sobre o Marselha demonstrou que essa é a única carta do naipe onde as espadas realmente cruzam entre si. O embate definitivo, a materialização de tudo aquilo que o Ás ressoava no seu princípio. Se tenho a capacidade de lutar, posso decidir se o faço ou se desisto. Mas quando chegamos aqui já não podemos mais desistir. É matar ou morrer, e ponto. Ponto final, definitivo, muitas vezes amargo. Às vezes esperançoso, contudo, como aquele monólogo do Samwise no final do Senhor dos Anéis: As Duas Torres.
Toda guerra é ruim? Sem dúvida a maioria delas. Mas há batalhas que estão para além de propósitos mesquinhos, ganâncias e narcisismos. Há quem lute realmente por uma ideia, por um motivo nobre. E ainda que sangre, ainda que sofra, ainda perca um braço ou enlouqueça em meio ao turbilhão de escudos, lanças e espadas, esse herói sente seu dever cumprido. E talvez, com sorte, sobreviva para contar uma história. Nem sempre acontece. Nem todo soldado marcha de volta para casa. Poucos abraçam seus pais.
Mas quando surge uma guerra inexorável, lutamos para quem sabe alcançar esse abraço. Lutar para realizar aquilo que tanto ambicionamos. Ou lutar pela luta, pelo desejo da cólera e da adrenalina. Mas lutar, sem fim lutar, espada adentro, espada afora, até que perfuremos todos os inimigos ou sejamos perfurados por eles. Dito isso, termino com um agridoce bélico: acho o Dez de Espadas do Waite melodramático demais.
É estranho comentar sobre uma carta como essa pelo fato da gente viver tanto as redundâncias e pieguices dela. Duas copas, dois desejos, dois lábios: um beijo sela como os peixes selam sua sede na fonte que jorra neste processo que chamamos de um mais um é igual a dois. E às vezes um mais um vale mais que dois, vale menos, vale nada.
Viver o outro pode ser algo particularmente difícil. O outro, esse inacessível. O outro, esse segredo. Mesmo assim tentamos. Às vezes nem sei o porquê. Acho que é simplesmente aquele sentimento particular e budista que o outro também é de certa forma nós mesmos. Que quando amamos alguém, estamos de certa forma nos amando. E estamos amando o mundo inteiro.
Mas esses vivenciar o outro é cheio de percalços, de dores, de lutas. Quantos nos mostram a flor enquanto ocultam a faca? Quantos nos abraçam com o escárnio oculto na língua? Amar é um deserto e seus temores. E amar é ouvir Djavan e por vezes sorrir, por vocês chorar. Amar é um ato de coragem. E para amar é importante saber bem quem é o outro que te acompanha no caminho. Para que na partilha dos cálices só bebamos o mais dócil vinho, o mais alegre licor.
E frente as perfídias desse mundo de pessoas tantas, quem divide a travessia com você? Quem é digno de vivenciar os mesmos passos que você dá. A maior beleza que podemos ter nessa carta é saber que por mais que mil pessoas tentem nos desabar, sempre haverá alguém que levante nossos escombros, nos ponha de pé novamente. E felizmente percebo que em meio aos golpes de alguns, há quem me defenda e me ponha de pé. Quem me faça perceber que amar é um ato justo, um ato que por mais que envolva os perigos do desejo, da obsessão e do idealismo, é uma atitude nobre, seja lá o tipo de amor que for.
Porque o amor quando é amor, a gente sabe que o outro também é parte da gente. Que ao amarmos alguém, amamos a nós mesmos e amamos ao mundo inteiro. E como cantou Stevie Wonder: all in love is fair. E a minhas amizades, aos meus consulentes, seguidores e admiradores, eu só posso dizer, seja ou não piegas, seja ou não clichê: eu amo vocês.
"O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."
(1 Coríntios 13:4-7)
Eu penso que existem certas coisas que fazemos por fazer. Assim, sem razão ou emoção ou objetivo. Fazemos por fazer, pela vontade de simplesmente ter feito. Existem ações que não se mensuram objetivamente. Coisas que são significativas por simplesmente serem realizadas. Aqui temos aquilo que chamamos de obra-prima. Quando se faz algo por vontade mais do que por vaidade. Eu quero, eu faço, eu posso fazer.
Se a humanidade chegou onde chegou, foi porque quisemos ser mais. Quisemos fazer coisas que fossem mais do que meros auxílios ou sustentos. Não nos bastou o barco, fizemos o navio. O que é uma oca frente a um castelo? Transformamos sons em palavras, demos significado a elas, elaboramos frases, criamos livros, fizemos tudo que era mais do que precisávamos. Nós nunca desejamos somente o necessário: queremos o além do imprescindível.
Porque se fossemos só a vontade pelo conforto ou pelo gozo ou pela vitória, bem, nós seriamos demasiado tolos, demasiado fúteis. Aquilo que faz o ser estar para além de si é aquilo que ele transforma num legado. O que não cabe só a si mesmo, mas àqueles que o sucedem, os que haverão de realmente usufruir seu empenho.
Quando um escritor escreve um livro por dez anos, quando um artista pinta a mesma pintura por cinco anos, quando alguém se dispõe de força para erguer um monumento, tudo isso não é realmente uma necessidade material, algo que realmente precisamos para viver, para subsistir. Mas é um ato espiritual, algo que está para além do tempo e das nossas necessidades físicas. Não lembro qual filosofia oriental disse que nós não veremos realmente aquilo que de mais importante fizemos em nossa vida. Mas realmente não veremos.
Aquilo que deixamos de mais significativo ficará para além de nossa própria existência. Tal qual um velho moribundo que planta uma árvore que ele próprio não verá nascer. Ele não se importa com isso. O que realmente é importante é que um dia a árvore irá nascer e dar sombras não importa para quem for que seja. O importante é fazer aquilo que um dia será benéfico, por mais exaustivo que nos possa ser. E isso, creio eu, podemos chamar de altruísmo.