Para cada reino, uma necessidade. Se temos uma guerra, este é o rei. Espada desembainhada, o olhar frio e cortante tal qual sua arma. A parte fogosa do ar segundo Crowley, aqui temos o vento que prenuncia o conflito. O reino dele é a espada, a razão, a verdade seja dócil ou dolorosa. No caso dele, geralmente é o segundo caso.
É o rei pragmático tal qual seu naipe. Os fins justificam os meios. Se possível, evite o meio e vá logo pro fim. Suas luas na ombreira trazem a clara lembrança do homem que conduz o arcano VII, a carruagem. Seria o Rei de Espadas aquele mesmo jovem que, uma vez largando o andar da carruagem, percebeu que nem sempre dá pra fugir das lutas?
Ou que mais do que conduzir, que abarcar dualidades, às vezes precisamos decidir entre o cara e a coroa, enfiar a espada no pescoço de quem for preciso e aceitar as consequências. Este é aquele que impera na ação fria da lâmina, sem muito sentimento. É o tático, o estrategista, o homem que faz pessoas morrerem na linha de frente.
Há tempos que exigem medidas duras, pulso firme. Esse é o aprendizado bélico. Aceitar que não dá pra ser sempre dócil, que às vezes é preciso saber ser amargo, até mesmo autoritário. Porque no pior esse rei vira um Nero, botando até o Marquês de Sade pra chorar de tanta crueldade. Há que ser duro mas sem perder a ternura, disse certo revolucionário, ou pelo menos foi o que nos contaram. Saberemos dosar os males necessários?
Quando comprei meu primeiro Smith-Waite, uma edição nacional da editora Artha, o baralho veio com 79 cartas. Duas Rainhas de Espadas. Levei aquilo como um sinal, uma mensagem, uma orientação a qual precisaria entender nem que levasse tempo. E talvez seja hora de meditar sobre ela.
Meu trabalho com tarô me ensinou na prática o que é a Rainha de Espadas. Você quer uma mulher sofrida? É ela. Você quer uma mulher forte? Também. Parte da força da Rainha de Espadas é a sua própria dor, esta capacidade de apesar da mais bruta tristeza brandir uma espada e seguir em frente. Alguns dirão que ela só uma viúva frígida, uma inimiga, uma pessoa desconfiada da vida, mas eu direi: ela é quem viu a dor e não desistiu.
A Rainha de Espadas é a consulente que viveu um relacionamento abusivo e ainda está no processo de superar. É também aquela que já superou mas a ferida ainda lateja vez e outra, como uma lembrança, uma memória. É aquela que já sofreu as mais cruéis violências e persistiu. A que foi humilhada, a que foi traída, a que foi taxada de louca. Mas cada uma delas sobrevive e brande sua espada para contar a história.
E minhas cartas contam estas dores. Meu destino se sente sobressaltado como a minha Vênus exilada, deusa que se veste num escudo, mulher que se faz guerreira. Porque a vida é uma guerra, sim, e o amor custa caro. Mas o amor é importante ainda assim. Que por mais que elas sofram, elas ainda acreditam no amor, ainda confiam que a felicidade virá.
E eu mesmo com o coração tantas vezes partido, também acredito na felicidade, no amor. Brando a espada para proteger meu coração, mas sei que em mim reside também o anseio de acolher. Pois até a Rainha que luta carrega em seu ventre o signo do porvir. E eu mesmo já me pus a amar Rainhas de Espadas. Me encantei pelas feridas que ignorei em mim. É preciso amar apesar da dor. É preciso acreditar, mesmo com a espada em riste.
Sigamos, lutemos, amemos. A vida é para os fortes. Assim aprendi com minhas consulentes, com as cartas, com o dia-a-dia. Acho que estou apaixonado por uma Rainha de Espadas.
Naipe de artista, pique de jogador. O Rei de Paus é a figura pronta pra qualquer batalha. Não necessariamente porque ele vai ter toda uma estratégia bolada, mas sim porque ele sabe bem como agir. Se for pra quebrar pau, ele vai quebrar, se for pra sorrir, vai sorrir. É o populista, sabe agradar, sabe seduzir, gosta de aparecer, ser o centro da atenção. Mas também sabe bater quando é a hora de bater. E como bate, né? Olha o tamanho do porrete.
Fogo do fogo, é fogo até dizer chega, um dinamismo e proatividade que cansa. Mas sendo rei, sabe seus deveres, não queima por queimar. Treino é treino, jogo é jogo. Ele contudo gosta tanto de treinar quanto de jogar. O importante é não ficar quieto. Eu vejo a imagem dele e apesar de sentado parece que a qualquer momento vai pular do trono e partir pra luta.
É assim, assim. Se não for assim, é assado. Rei que convence, que é objetivo, poucas firulas. Vamos resolver e acabou. É forte, é ativo, mas não tem a mesma brutidão de um Cavaleiro ou a inconstância do Valete. Mas gosta de mandar, gosta de estar no poder. E quando alguém ameaça o trono, a gente pode conhecer sua tirania. Vai brincar com fogo pra ver no que dá.
É tempo de saber agir, de saber mostrar sua autoridade não com a ameaça da espada mas com o brilho da chama. Chama essa que, tão bela de admirar, não ouse tocar a preço de queimaduras. Porque da espada pro pau o que muda é o impacto da pancada, mas porrada é porrada. E vez e outra, vale a pena dar uma pancada bem dada. Pra ser Rei de Paus tem que se garantir no soco.
Admirar a riqueza de ser aquilo que se é. Vejo essa rainha, esse admirar da moeda em mãos, e é isso: apreço. Satisfação de estar repousada num bom sofá, de deleitar o sabor da boa vida. Se nas rainhas temos sempre uma questão de introjeção da essência dos naipes, essa senhora é a nossa material girl. Ela sabe sentir as coisas materiais com gosto, prazer, deleite. Comer uma fruta com ela não é só o comer a fruta, mas sentir a textura, o sabor, o aroma, cada detalhe daquilo que ela toma para si, que nutre seu corpo, que lhe dá matéria, sustância.
Ser a rainha de ouros é saber o que é abundância e não se dar ao medo de usufruir. Se tenho algo e me faz bem sem fazer mal pra ninguém, por que não aproveitar o que tenho? O hedonismo às vezes é uma boa coisa. Quantas vezes a gente não se dá ao direito de aproveitar as coisas como realmente devíamos? O chocolate comido em dois minutos, o exercício que fazemos mais por necessidade do que por prazer, o fazer coisas por fazer ao invés de por prazer.
Essa rainha nos convida ao entendimento do corpo, ao toque, se preciso até mesmo a indulgência, o deleite pelo deleite. Quantas vezes você tem negado sua própria carne? O direito talvez inalienável de pecar. Não como quem busca fazer um mal, mas sim um bem enorme a si mesmo. Sentir-se, provar-se, mesmo na solidão. Nosso corpo não seria de certa forma, a única coisa que podemos ter certeza que temos? Então por que o negamos tantas vezes?
A Rainha de Ouros não sente culpa em fazer aquilo que seu corpo pede. E a maioria das vezes não deveríamos ter esse sentimento também. Ter um corpo é ter vida, é sinal de estar vivo. Se a alma existe como tantas pessoas dizem, de que adianta tê-la se não agraciamos primeiro seu receptáculo? Nossa senhora do pentáculo contempla a graça de sua própria essência, de sua própria carne e repete o dito nietzschiano:
“Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para algo no corpo. O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”