Eremitérios
A renúncia também é uma escolha, talvez a mais a cruel delas. Ou a mais necessária. O Cupido, insígnia dos desejos, ofusca a luz dO Sol no arcano VI. Onde se deseja, é oculta a clareza, o raciocínio se torna vago, tendencioso. O Eremita abandona o desejo para criar sua própria luz, uma que reflita a do astro rei mas caiba em suas mãos. O lampião é o fruto da decisão do homem que ao decidir entre os anseios e a solidão, ansiou a solidão e assim não ansiou nada mais.
“O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um ponto, sempre presente
Pegadas ecoando na memória
Por entre a passagem que não seguimos
Através da porta que não abrimos
Dentro do jardim de rosas.”
Assim disse T.S. Eliot no começo de seu primeiro quarteto, Burnt Norton. Cada escolha cria o caminho do que foi e do que não foi, ambos marcados no presente igualmente. O que renunciamos muitas vezes nos marca mais profundamente do que aquilo que escolhemos. E o arcano VIIII sabe disso profundamente. Ele abandonou a via mundana para acessar um caminho só dele. Largou as convenções sociais e abraçou as montanhas. Acendeu um archote com o fogo de seu espírito. Mas para isso, precisou escolher.
Os Enamorados é mais do que mera carta de amor ou casamento, é a via crucis do caminho que se toma e daquele que se renuncia. É um caminho de dois desejos, no qual o velho sábio iluminado decidiu renunciar ambas as escolhas: decidiu desejar o indesejável, abarcar o que ninguém quer. Entre o afeto e a luxúria, ele escolheu o frio das pedras, o abraço do orvalho, o silêncio do hermitão, o guru. Viesse hoje Alexandre O Grande e perguntasse novamente o que desejas, Diógenes diria a mesma coisa: não me tape a luz do sol.
“Vôo hesitante sobre as profundezas.
Nenhuma culpa.”
Sobre a quarta linha do primeiro hexagrama, Richard Wilhem comentou sobre a necessidade de escolha entre dois caminhos para o grande homem: o do herói e o do grande sábio. Nenhum dos caminhos é errado, ambos são igualmente justos e só depende da escolha nas profundezas do grande homem. Se for um herói, vai lutar pela ordem do mundo, se tornar um líder, um guerreiro, uma figura de ação que influencia toda a sociedade. Se for um sábio, vai salvar o mundo lutando a batalha interna, alcançando a luz de si mesmo no recolhimento. Em nenhum caminho há erro, mas escolhendo um, não se pode seguir o outro. Talvez o caminho do herói tenha criado A Carruagem, mas é o caminho do sábio que abarcou o Eremita.
E viesse A Carruagem e perguntasse o que desejas, O Eremita diria: não apague meu lampião. É a luz que eu lentamente elaborei quando escolhi renegar o desejo e suas escolhas. Não apague o sol que carrego em mãos.
E a Carruagem iria embora, silenciosa.