Honrar os mortos,
não esquecê-los,
tarefa fundamental:
os ossos firmam o chão
onde pisamos
chão que seremos
para futuros transeuntes,
fantasmas do porvir,
transparentes e louváveis,
fantasmas que somos
em suor, pânico, ansiedade,
fantasmas que amamos
por medo ou vontade.
Honrar os ancestrais,
anciãs, patriarcas,
acender velas parcas,
embeber cemitérios
com pinga e lágrimas,
dar moedas ao Caronte,
ao Seu Caveira, às moiras,
para lembrar,
jamais esquecer.
Vovó Jaíra no sofá sentada assistindo a TV Gazeta,
vovô Claudir, o retrato que somente conheci
& vovô Joaquim, a memória é turva,
te lembro mas pouco reconheço na memória;
dindo Cláudio, na cama a cruz do melanoma,
rindo pronunciava "Os Dez Mandamentos";
prima Anriete, como a vida é breve, ainda lembro,
nos meus cinco anos você indo embora de carro
& a Tia Mercedes, que alegre sorriso,
a porta da sua casa é um espasmo vazio;
o Chocolate que só ouço em tantas histórias,
jogando futebol e tomando cerveja;
a Tia Ana e setecentos mil esquecidos
que pelo vírus foram holocausto vivo;
Cirleia, Leleia, que saudades do teu riso,
Seu Djalma, ninguém mais vai te calar a boca,
bebe um golinho no céu com o Tindeco,
o paraíso é um cortejo discreto,
uma funerária do infinito, coro de anjos,
música de tantas vozes, os idos e vindos,
afins e ressoantes, ouço tantos bilhares,
como posso falar da totalidade,
como posso honrá-los, rememorá-los?
Louvar o que o conheço e desconheço,
o que lembro e o que esqueço,
o que veio e o que virá, louvar, louvar, louvar,
com lágrimas e sorrisos de gratidão,
louvar o passado na imensidão,
o futuro na sua infinitude
& o presente convergente, caminho do meio,
onde respiro minha vida atuante,
meu fantasma do que fui,
meu fantasma do que serei.
Ouvir Belchior que num sonho conheci,
antes de sua morte, seu rosto eu vi,
a polícia levava em um camburão, você, camelô,
para o mistério da imensidão. Ouvir Bowie,
que em choro revivi, Estrela Negra,
ó Lázaro, quem te ressuscitará?
Lembrar Kafka ao ver insetos,
Clarice por entre as baratas,
Dostoiévski nos subsolos,
Kandinsky num arco-íris,
de Crowley, o mistério de bestas e estrelas,
girassóis para Van Gogh, a cruz para Cristo
e lembrar Jack da Lanterna, fantasma andarilho,
as bruxas queimadas da Idade Média,
Hilda Hilst sondando além-túmulos;
em ônibus, Rosa Parks; nos quadros, Frida;
e são tantas vozes, tantas ossadas,
dinossauros, dodôs, animais raros,
dragões, serpentes e pecados
& estrelas supernovas no infinito,
galáxias, buracos negros, tempos aflitos
e o vácuo glorioso do Big Bang,
o silêncio ominoso do Big Crunch,
tudo isso se assoma, se agiganta
neste impassível momento
onde tudo é estátua, é relógio,
o fantasma deste exato momento.
Honrar os mortos,
não esquecê-los
é a tarefa eterna.
Não esqueça:
comemore a
grande festa.