A vigésima lâmina carrega um sentimento de assombro. Não um assombro fatalista de Arcano Sem Nome ou de Torre, mas sim aquele que surge no deslumbramento.
Dentre a arcana jornada, pra mim não existe carta que tenha uma aura mais miraculosa que essa. Estamos literalmente frente ao Juízo Final, a trombeta está erguida e os mortos ressuscitando, algo incrível acontecerá. Ou talvez não aconteça nada, simplesmente nada. Você dormir e acordar no outro dia já é uma ressurreição, um micro-Juízo.
No XX tudo fica em suspenso, não nos cabe agir, fazer acontecer, no máximo oramos, nos curvamos insignificantes perante a grandeza das coisas todas. Orai e vigiai, bem ao estilo do messias cristão. Aqui receberemos o quinhão que nos é devido. Para uns o céu, outros o inferno. Para alguns, nada. Porque receber nada também pode ser um milagre.
Seja você crente ou descrente das coisas de além do mundo, nesse arcano todos ficam nus. Aqui se vê a comunidade entre os homens, o momento em que ricos e pobres, sábios e tolos, fracos e fortes, todos perdem seus trajes: aqui somos completamente sinceros e frágeis. Porque para estar frente as verdades mais profundas, não nos cabe adornos, precisamos estar despidos, puros, entregues.
O Julgamento é o arcano do tudo pode acontecer. Simplesmente é assim. É completamente diferente dA Justiça, porque lá temos a estrutura legislativa, aqui o veredito. Quando a gente assiste aqueles filmes ou seriados com histórias se passando na corte, num processo judicial ou onde alguma lei se faz presente, quando uma testemunha de última hora aparece e muda toda a situação, revira o tribunal de cabeça pra baixo, isso é Le Jugement. O arcano VIII pode ter suas regras, suas firulas burocráticas e adornos, mas quando a verdade se apresenta de última hora como num soar de trombetas, aí temos o Juízo.
E esse penúltimo arcano para além de luz é faísca, chama incendiária que se reflete nos áses de Paus e Espadas, as duas lâminas que são seguradas por uma mão. Não seria essa mão quiçá a mão do anjo? Talvez a mão de Deus, criador e destruidor das coisas todas? Onde existe o poder de criar e o poder julgar, o poder de elaborar e ruir, paus e espadas em mãos, não estaria o rememorar deste fato deslumbrante que a todo momento estamos sendo julgados em cada ato e desato? Não falo de carmas ou escatologias quando digo isso: cada olho humano que nos observa é um juiz silencioso.
Existe um recurso narrativo conhecido como Deus Ex Machina. Esta expressão latina pode ser traduzia como Deus surgido na máquina. Nas peças gregas, quanto a peça chegava numa situação aparentemente insolúvel, uma pessoa era abaixada por uma corda e cumpria o papel do divino, trazendo uma resolução para tudo, assim, do nada. Sinceramente, é um dos recursos narrativos que menos aprecio. Porque geralmente empobrece uma trama. Indica que o autor não sabe como acabar aquilo que elaborou e simplesmente apela literalmente pro divino.
E o Julgamento pra mim é o Deus Ex Machina do tarô. Da mesma forma que o Apocalipse o é na Bíblia. A ideia do fim do mundo é uma solução fácil para as coisas. Quem é bom é arrebatado, quem é mal arde no inferno. Ironicamente, talvez o Apocalipse seja um dos meus livros favoritos do escopo bíblico. Talvez pelo simples fato que todo esse recurso narrativo é utilizado numa riqueza simbólica que agrega todos os livros anteriores, tanto os judaicos quanto os cristãos. Não é uma resolução simplesmente pela situação ser insolúvel.
E da mesma forma O Julgamento do tarô é uma resolução que apesar de parecer ressoar esse recurso narrativo que considero pobre, mera muleta para concluir histórias, também funciona de uma forma apropriada, satisfatória. Porque compreender O Julgamento no tarô é também entender todo o caminho que nos levou até ele. No caminho dos vintedois arcanos, esse arcano não é um recurso pobre porque houve todo um caminho anteriormente seguido que, por vez e outra nos levou a pontos que pareciam insolúveis mas que, contudo, não o eram.
Vivemos A Lua, o mais obscuro arcano, o eclipse, a morte da luz, o profundo mistério, mas todo eclipse não perdura eternamente e O Sol novamente se estabelece. Finalmente sabemos tudo aquilo que é verdadeiro, que não pode ser escondido. Sabemos o que é certo. Já vivemos toda a experiência anterior das cartas, soubemos uma infinidade de assuntos, de questões, aprendizados morais e éticos. O Julgamento surge então como a hora de uma verdade para além da verdade solar.
Porque O Sol é uma representação do divino, mas não é o divino em sua totalidade. Este Sol, anteriormente ofuscado por Cupidos e Luas, agora ele não nos é mais necessário, porque encontramos o anjo anunciador, a luz para além da luz. Aquele que anuncia a verdade mais verdade que o Sol. Sua trombeta nos é inescapável. Quando a ouvimos, só nos cabe rezar e preparar-se para a revaluação. A revelação.
Entender O Julgamento é saber que chega-se um tempo onde precisamos prestar contas sobre nossos atos. Se fazemos o certo, temos o paraíso como garantia. O errado, conhecemos o inferno. Mas quando Gabriel toca sua trombeta, sabemos que não dá pra fugir. Haveremos de pagar ou usufruir aquilo que fizemos. E este é um tempo onde milagres dos mais amplos podem acontecer. Nada será como antes amanhã.
Quando Deus desce o mecanismo e anuncia o fim de tudo que acreditamos ser real, você treme frente o trovejar do som, se ajoelha e reza ou se prepara para o anúncio sem medo, sem temor? Porque para cada um seu quinhão, seja no céu, seja no inferno. Oremos.