Rufem os tambores.
Toquem o címbalo.
Abram as cortinas.
O espetáculo vai começar.
Pra que ter a verdade quando se pode ter a meia-verdade? O prestígio é o aprendizado da fantasia. Há mentiras que valem mais que o real. O palco nos abre para a matéria de que são feitas os sonhos. Falar do Mago é sempre falar. Falar, falar, farfalar e farfalhar. Falhar. Esse é um arcano que ou se ama ou se odeia. Fale bem ou fale mal, mas fale de mim. Eu não tenho culpa se você não é feliz.
Contar uma história é sempre este processo mágico. A mágica de um charlatão. Porque dizer algo é sempre contar uma impressão, não necessariamente uma verdade. Esse é o arcano que atrai público porque saber dizer. Se o que diz é verdade ou mentira, o que importa é se é uma trama bem contada. A fofoca é uma benção para o homem-palco. Se traz aplauso, é digno de apreciação.
O homem que se faz público, se faz espetacular. Marginalmente sobre-humano. Como pode um Zé Ninguém no lugar certo, no momento certo, se fazer um semideus? Quando tem a mesa a postos e as ferramentas devidas, ele faz você acreditar que o coelho estava na cartola. Que a moeda sumiu. Que você é realmente importante pra ele, até você cair no conto do vigário e levar o calote.
Malandro é malandro, mané é mané, podes crer que é. Às vezes o Mago é o malandro, às vezes o mané. Nem todo mundo cai no papinho, nem todo mundo entra na festa. O salve simpatia por vezes é um salve-se quem puder. Te vende o ouro e te faz tolo. Esse arcano só se torna mago se tem público pra aplaudir. Se não acaba sendo mais um na multidão.
Na festa, é a própria música. No palco, o holofote. No protesto, a voz do povo se fingindo voz de Deus. Nasceu pra ser profano profeta, desses que te promete o mundo ao custo do inferno. Creia ou não creia, ele te dirá algo. E você pode acreditar ou rejeitar, mas algo será dito. Ele te amará na segunda-feira tal qual ama a outra na terça e o outro na quinta. Ele dirá ser um homem, um deus e um diabo e no fim das contas não será nenhuma das coisas, - ou será todas. Geralmente nenhuma.
O Mago é um ator. Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor. Lhe tenho amor. Lhe tenho horror. Lhe faço amor. Eu sou um ator. Eu sou um ato. O Mago é a ação, a manha, a malemolência, o swing, o ritmo, o show, a dancinha, o estalar dos dedos, a piada bem contada, a punchline, o timing, o pé na jaca, a promessa com os dedos cruzados. O Mago pode tudo, mas nem tudo a ele convém. Nem tudo ele quer. Um dia o sol, no outro a lua, depois a estrela. E depois nada.
Os holofotes apagam.
As cortinas fecham.
Os aplausos acabam.
Até amanhã: entrada paga.
alusão - é a citação, referência ou menção, indireta e breve sobre algo ou alguém. normalmente, serve como um mecanismo de retórica que ajuda a exemplificar determinada ideia, colocando-a em comparação com algo que lhe seja similar.
ilusão - é o engano dos sentidos ou da mente, que faz com que se interprete erroneamente um fato ou uma sensação. é a troca da aparência real por uma ideia falsa. é também um devaneio, um sonho, um produto da imaginação.
*
o mago é o senhor da alusão-ilusão, toda sua mecânica de prestigiador funciona na base daquilo que ele demonstra/alude ao público de forma a distrair para o momento no qual os surpreende/ilude. a capacidade da fala, do movimento rápido dos objetos, tudo isso são formas de criar esse efeito ambíguo e poderoso de criar o prestígio, a meia-verdade que sendo tão meia acaba sendo verdade: o triunfo do espetáculo é criar algo tão falso que chega a ser verdadeiro.
a destreza do movimento dos dados, das varetas, dos copos, das lâminas, tudo isso faz parte do processo, ao tempo que a língua se contorce com o palato e as cordas vocais ressoam criando palavras, distrações, palavras tão bem ditas, tão benditas que nos impossibilitam ver que o dado não desapareceu realmente, que o coelho não estava realmente na cartola, que tudo isso é um jogo mais do que a real magia que usufrui as forças da natureza.
mas a magia prestigiadora é magia também, porque cria uma verdade, uma verdade que não se estabelece necessariamente no plano do real, mas nas ideias, na mente: quando a criança observa a moeda desaparecer e então reaparecer, ele acredita. acreditar é criar uma verdade.
o I não nos dá a verdade por completo, mas entrega uma meia-verdade que cabe ao observador crer ou negar. o processo tradutor dos símbolos é também prestígio, eterna alusão-ilusão. aludir uma ideia é também iludir, porque realmente não conseguiremos contar toda a verdade que reside em uma imagem. ao oraculista cabe sempre a meia-verdade que só se torna verdade ou mentira frente o consulente, este sim decirirá se a palavra será abraçada ou renegada. a nós, tradutores do mundo, a verdade-verdadeira, o XXI, só nos cabe desse XX o I, as interpretações vagas e particulares que não carregam a verdade por inteira.
cabe a nós traduzir o suficiente desse I, particularmente trazer nossa alusão-ilusão ao palco dos sentidos, falar bonito enquanto esconde os dados, tentar surpreender. cabe ao consulente decidir se quer a ilusão ou a alusão.
A vontade não basta, O Mago ensina. Se de um lado temos a possibilidade, o desejo, a volição, se não fazemos algo com isso, do que adianta? Torna-se ilusão. Não a toa o primeiro trunfo é também conhecido comO Prestidigitador, aquele que engana com as mãos. Não existe mentira naquilo que não é verdade, só não existe verdade além da vontade. Eu queria que fosse, queria, mas não foi.
Apesar de ser um arcano que tantos de nós observamos com um otimismo sem reservas, existe malícia. Há lição mais cruel do que algo ter potencial, mas somente ficar no potencial? Podemos ter uma semente, mas só plantando ela se torna uma árvore. Eu não posso pegar um pequeno broto e dizer: isto é uma árvore. Quem eu estou querendo enganar com isso?
É preciso ter desejo, é preciso ter tesão, mas só isso não adianta. A vontade sem esforço é engano, uma boa frase pra nosso dono dos quatro elementos. Se você tem a chance, se você tem o potencial, o que você faz: deseja ou põe a mão na massa? Só bota os itens na mesa ou prepara o bolo?
Uma breve anedota dos dezesseis anos: eu estava afim de uma garota, perguntei pras cartas se eu ia namorar ela, apareceu o moço do chapéu lemniscata e eu, leigo do jeito que era, não entendi foi é nada. Fiquei tipo: hm, isso é um sim, é um não? Quer dizer, é mago né, faz as coisas acontecerem e tal, talvez sim né? Hoje eu entendo que podia muito bem ser um sim se eu tivesse feito algo pra acontecer. Não fiz nada, foi um não. Vontade sem ação é vento. Ação com vontade é realização.
A mesa dO Mago está preparada, cabe a nós usufruir dos utensílios, agir, fazer acontecer. Se ficarmos sentados em nossas próprias vidas, ele terá nos enganado e não teremos nem a vontade de aplaudir. Afinal, queríamos que aquilo que ele nos mostrou fosse verdade. Se foi mentira, foi porque acreditamos.
Por que eu admiro O Prestigiador?
Porque seu discurso é palatável. Ele não se obriga a ser difícil. Muito pelo contrário. Seu caminho é o do que é fácil. Ele é pop. Sua banalidade o sacraliza.
Não existem grandes segredos. Existe sempre uma piada, um trocadilho. Ele é fácil de ouvir porque ele se faz ser fácil. Ele sabe enganar porque é um contador de histórias.
E a verdade às vezes é uma mentira bem contada. E a isso chamamos arte. Chamamos ficção. Chamamos espetáculo.
O Mago é como um chiclete. Você mastiga mastiga mas não pode engolir. Ou pelo menos não deveria. É também uma fonte de carboidrato fácil, não sacia nem nutre, mas é gostosa.
É a via do menor esforço.
Agora você vê, agora não vê mais.
O coelho nunca esteve na cartola.
Um mover de dedos.
Um estalo.