Esse é um daqueles textos bovinos, não necessariamente por falar do gado, mas por envolver aquela digressão que deve ser mastigada, digerida, remastigada, redigerida e ainda assim não saberemos se dá leite. Sei também os perigos que envolvem falar de política e sociedade numa página oracular, porque infelizmente muitas pessoas acreditam que tudo aquilo que envolve o místico, o simbólico, o esotérico, tudo isso está desconexo do plano real das coisas, do político, do social, do humano.
Mas como já pontuei algumas vezes aqui, oráculos são políticos e, mais que isso, já foram usados com motivações políticas. Igrejas foram erguidas por meio de mapas astrais, as cartas do tarô tem figuras de autoridade que representam seu período histórico, as religiões até hoje tem sido mais um símbolo de conflito e oposição de estruturas políticas do que necessariamente uma busca do religare, da ligação com o divino. Porque as pessoas não se importam muito com o divino, sejamos sinceros. Ter religião hoje em dia tem sido acima de tudo ter uma opinião. A opinião tem sido maior que as deidades.
Hoje vivemos guerras santas que de santidade não tem nada. O deus maior é o Dinheiro que move Macedos, Flordelises, Soareses. Os mesmos que tentam isenções de impostos bilionárias no congresso e que o nosso rei descabeçado veta mas se coçando pra não vetar. Quem não deve não teme. Mas vivemos no país dos devedores. No país da irresponsabilidade. Arroz por trinta reais, tentativa de taxação de livros e isenção de igrejas. Quer dinheiro fácil sem pagar imposto? Abra uma igreja. Aproveita que tá facinho. Não temos responsabilidade sobre governo, sobre os deuses, sobre coisa alguma.
Fingimos não ter responsabilidade. Temos medo quando a Torre desmorona, quando a Amazônia e o Pantanal viram terra de ninguém, terra de nada, por que o que vai sobrar de lá do jeito que bancada BBB tá se masturbando com fogo? No tarô a gente sempre pensa que o XVI é uma carta de infortúnios vindos de fora, coisas que em tese não temos necessariamente culpa alguma. Eu não vejo assim precisamente. A Casa de Deus é acima de tudo uma destruição vinda de erros estruturais. Se a igreja fosse forte, o trovão não a destruiria. Se tivéssemos coroado o rei com uma guilhotina, as coisas não seriam assim. É triste contudo pensar que não dá pra guilhotinar um rei que já nasceu sem cabeça.
Deus destrói certo as linhas tortas. Todos nós temos culpa, até aqueles que, na ablução das pias batismais, dizem arrependimento. Arrependimento não ressuscita os mortos, olho os 133 mil* do genocídio naquilo que a Facção Central ao cantar sobre a violência nas favelas chamou como “direto do campo de extermínio”. Arrependimento não reconstrói florestas. Todos temos culpa. Os que na indiferença abraçaram a nulidade, culpados. O pecado mais sutil é o que chamamos omissão. Mas pior é que até os que lutaram contra tudo isso, até nós temos a culpa, culpa essa misteriosa mas ainda assim cruel. Culpa de quem tentando salvar um morto, no desespero o sufoca até a morte. Podíamos ter feito diferente, lutado de formas diferentes, podíamos ter tentado, fizemos o que pudemos, mas o cadáver agora fede. Temos uma culpa branda, ainda culpa.
No reino sem cabeça, todos tem culpa, isso é tão infeliz. Porque quando o relâmpago da verdade cai sobre os alicerces falidos, todos nós desmoronamos juntos. Então não importa se algum de nós estava correto, porque no fim as chamas consomem todos na uniformidade. A coroa do rei sem cabeça cai, mas não sem antes consumir todo o reinado.
E quem de nós, indo em praias, postando fotos sem máscara, abraçando a conivência ou a indiferença, quem de nós, comendo nosso prato de bife, fazendo nosso churrasquinho, bebendo nosso vinho, quem de nós, fazendo arminha com a mão, defendendo políticos de estimação e a ideia de um estado podre que pode ser melhorado com o voto certo, quem de nós, sem entender que o problema reside numa estrutura de 500 anos, um conjunto de mortos que soergue o fundamento do solo, os alicerces da pátria armada guerra, quem de nós sobreviverá para contar a história de um reinado sem rei, sem lei, sem deus?
* Texto de 17 de Setembro de 2020. A quantidade de mortos aumentou para 684 mil.
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