Pendu-pendurado, o tão conhecido “enforcado” que de forca não tem nada. Haja carta tão clara e tão obscura, a mesma ambiguidade desse rosto que, mesmo imóvel parece indiferente ao seu destino. Esta ambígua face se apresenta frente aos interpretes das mais diversas formas: há quem veja um mártir, alguém que se sacrifica por um bem maior, um herói, Cristo em cruz, Odin na Yggdrasil. E aí o tal pendurado vira o sacrificado, o martirizado, o crucificado ou se você for o Court de Gebelin, ele fica até de pé, virando “cautela”. E em meio a tanta discussão, aquela expressão impávida de quem tá nem aí com nada, de cabeça pra baixo, olhar atento de peixe morto, - pendurado.
Não considero necessariamente que essas diversas interpretações estejam erradas mas é importante lembrar que um dos primeiros nomes do arcano XII era O Traidor e em diversas iconografias temos um homem atado de cabeça pra baixo perdendo o dinheiro que havia dentro de sacas: acho que num estalo fomos de sacrifício messiânico pra “Judas Iscariotes”. Temos na lâmina nada mais nada menos que um criminoso, alguém que traiu seu senhor, o furtou, e o fato de estar pendurado é porque está sendo punido. Acho interessante lembrar que na Comédia, a pior parte do Inferno de Dante estava reservada àqueles que traíram seus senhores e mestres.
Quer dizer então que o nosso cabeça-pra-baixo não é um salvador da pátria? Depende. Talvez seja. A grande questão do arcano é que se ele está do jeito que está, existe um motivo. Não é algo que veio do nada. Toda pessoa que é condenada por um crime, seja inocente ou não, sofre a pena por algum motivo. Cristo abalou as estruturas do poder vigente, este foi a razão de sua cruz. Judas se enforcou por encargo de consciência. Estar sereno frente uma condenação talvez seja simplesmente estar ciente do porque está ali. Ou, segundo alguns, simplesmente esse homem que nos olha já está morto.
Se ele está morto ou não, a mim não importa. A questão é a convicção que o colocou ali. Muitas vezes aquilo que mais nos condena é a própria ideia do que acreditávamos precisar ser feito. O Pendurado muitas vezes é simplesmente um trair a nós mesmos, é acreditar em coisas infundadas, a auto-ilusão. É o ser subversivo, ficar de cabeça pra baixo só pra ver o mundo virado. Pisar na grama quando a placa diz não, sem motivos ou com motivos até demais. Há algo de escapista nessa carta, esse sentimento de culpa que tanto pode ser real quanto indulgência, sadomasoquismo de praxe.
Quantas vezes cometemos uma falta e exercemos todo um sistema elaborado de culpa, de condenação tanto física quanto psicológica. Uma ação simples, feita de impulso e coração nos leva a um abismo, nos pendura de sobressalto. Talvez o grande crime de K. no livro O Processo foi simplesmente acreditar que havia cometido um crime. E aqui deixo, quem sabe, meus dois centavos: quando foi a última vez que, com ou sem motivo, você se sentiu um bandido?
Pendurado, sim. Sem cordas mas com público. Não há martírio maior que o de si. O ensimesmamento absoluto, a melancolia, o autodesprezo. Prezo mais pela plateia do que pelo ator principal. Aqui estou, sou ninguém. Vocês riem ou choram, o ator cumpre seu papel. Ser oraculista é saber usar a boca. Saber discursar. Mas ser humano envolve mais do que isso. Ser humano é saber fazer monólogos.
Aqui estou, homem vitruviano invertido, uma tristeza que não fica em pé. Me coloquei nessa posição por conta própria. Porque não me importo comigo. Por autodesprezo. Por autopiedade. Minha vida esse constante procurar por um sentido.
Comprar livros de tarô, tarôs, dados, runas, estudar astrologia, literatura, cinema, o raio que o parta. Tudo isso pra encontrar sentido. Mas quem procura o sentido não tem sentido a si mesmo. Se sente um corpo ausente, uma figura tola, um palhaço. Sem amor e incapaz de amar. Porque o coração está partido. Tudo que ele faz é se distrair, procurar distrações.
Procurar um sentido é uma distração demasiado humana. Qual o sentido da vida? Qual o meu futuro? Serei feliz? Todo autoconhecimento é um entretenimento. É tentar se distrair frente ao inevitável. É gozar um gozo interno. Jamais senti o prazer do outro. Meu orgasmo é em mim. E é doloroso. Todo mistério gozoso em mim é doloroso. Não sei o que é gozar sem sofrer.
Quando me desprezo é um ato de amor. Quando procuro amores, incoscientemente sei que quero algo que me faça doer. Pergunte ao seu orixá, amor só é bom se doer. Aprendi a doer por amor. Aprendi a amar o outro por não me amar o suficiente. Estou exausto. As cordas invisíveis que me penduram foram criadas por pensamentos.
Verdade cruel: só quem pode desatar minha vida sou eu.
(para escutar ouvindo Nuvem Negra na voz de Gal Costa ou Nana Caymmi; uma composição de Djavan)
O pior traidor é aquele que trai a si mesmo. Perdido no profuso de suas emoções marinhas, não sabe mais discernir o que é sua substância, o que é sua persona. Frente ao palco-cadafalso, entregue aos abutres, maldito prometeu-prometido, maldito seja o que pergunta Porquê. Maldito é porque jamais terá a resposta. Poderá intuir frente a dor das cordas que o arrebatam quem é. Mas jamais com a certeza. A certeza é para os simples de coração. Para os que carecem de duvidar. A certeza é para os esperançosos. Para os desesperados: a eterna inércia.
A casa pode cair: faremos outra. A morte pode matar: seremos flores ao solo. A lua nos cegar: virá o sol. Mas para quem está preso em si mesmo, não há cura: renda-se ao ordálio. Entregue-se para a cruz, clame por uma taça de vinagre, seja escarrado por seus ouvintes. Há uma hora em que o herói não pode salvar ninguém, muito menos a si próprio. Uma hora em que o amor não basta, jamais bastará: o amor me derrubou.
Ando com o corpo calejado de dores fantasmagóricas, uma inércia tenta me empurrar para a cama-mortalha, mas não morro nem vivo, permaneço uniforme como uma lagoa e em seguida confuso como a maré. E pedras saltitam por minha face. Pessoas buscam meu socorro e nada podem receber. Depressão, alguns dirão. Outros arguirão ser o medicamento suprimido. Mas a resposta que mais ressoa é o coração partido.
Um coração se parte, como consertar? Se é como um vidro, como um beijo de novela, uma esquiva e escusa fluidez de espuma. Meu coração não é nada além de estilhaços de diamantes. Não restou amor, só o brilho, a embriaguez de quem tenta esquecer. Mas como esquecer? Cada dor carrega em si uma dor antiga e outra dor ancestral, como uma centopeia de sofrimentos que superam minha própria vida, são as dores do mundo, são as dores de quem fará o maior sacríficio: perderá a si mesmo para se encontrar.
Meu Deus, por que me abandonaste? Se sabias que eu não era Deus. Se sabias que eu era uma lágrima, uma estalactite, uma lâmpada pendurada que pisca a beira do fim. Se eu morresse amanhã, as lágrimas durariam uma hora e a indiferença seria eterna. Vivo porque quero realmente ser lembrado, mesmo que a dor seja demais. Mesmo que a solidão seja o maior dos frutos da ingratidão. Sei que contemplei o abismo, - e ele sorriu.