Poucos são os arcanos em que a natureza se faz tão presente e marcante como no arcano XVII. Mais do que a presença, vemos aqui a ideia de integração da humanidade no meio natural, sem subjugar (Sol) nem ser subjugada (Lua), somente sendo parte do enorme organismo.
A Estrela nos convida a refletir: estamos realmente integrados ao ambiente em que nos encontramos? Sabemos como usufruir o que temos, sem cobiça e com gratidão? A jovem moça carrega água nas jarras mas devolve aquilo que ela não precisa porque ela respeita o meio ao qual se encontra. Ela só bebe o necessário.
Ao tempo em que temos nesta carta a presença das águas, aos arredores também é possível avistar árvores e um pássaro e, claro, acima de tudo, as estrelas que são a essência da carta. A verdadeira consciência da natureza exige o saber tanto das questões terrenas quanto as celestes, o jogo das correspondências, acima-abaixo hermético. Alguns baralhos representam as oito estrelas como os sete planetas da astrologia helenística e a estrela central como a própria energia divina que move os objetos celestes, o Primum Mobile.
Para entender o meio que nos circunda é preciso estar completamente nu, livre de qualquer adorno, sem preconceitos e ideias pré-estabelecidas. É nesta completa indefesidão que encontramos nosso papel no mundo, nossa estrela-guia e destino. Só assim conseguimos a água que precisamos nos momentos de sede.
Qual é a sua sede e como saciá-la nestes tempos onde nos sentimos tão distantes da natureza? É tempo de pensar e tempo de esperança. Porque uma das ideias do arcano XVII é a esperança, a idealização, o sonhar. É tempo de começar projetos, de pensar no futuro e colocar a mão na massa aos poucos. Porque a esperança sem ação é inércia e espera. Mas quando se luta pelos objetivos, é um passo rumando a realidade.
Texto de 2 de Junho de 2020.
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Se os XXII trunfos em conjunto formam uma enorme narrativa, um romance arquetípico, as cartas separadas formam capítulos da trama e quando conjuntas com outras formam atos, tramas paralelas, quiçá contos de um mesmo universo de símbolos.
Quando eu junto as três lâminas cósmicas, me surge uma história em mente:
É uma mulher livre, despida das amarras de hierarquias, estruturas, reinos e impérios. A única lei a qual serve é a da natureza, imperativo de tudo aquilo que vive e é carne. Ela sabe seu lugar no mundo e sabe suas obrigações para com o meio ao qual vive. Se tem sede, bebe água. Se sobra água, devolte ou distribui. Porque nela existe doçura e caridade.
Ela carrega dentro de si outra obrigação, outro dever. Como as jarras em suas mãos inundam, seu ventre e suas entranhas derramam um segredo. Carrega em si a origem do mundo preconizada por Gustave Courbet. Se uma das jarras oculta seu íntimo mas derrama dóceis águas, é sinal que seu íntimo é secreto porém fertil.
A Lua, luminar feminino, império dos segredos da maré, do sal e do sangue. Tal qual os ciclos manifestam os fluxos das ondas, representam também os influxos de dentro. Cada lunação é uma noite, um enigma animalesco, segredo profundo dos lobos e carangueijos. Algo cresce, toma forma, se procria na escuridão. Onde reside o secreto está também o porvir. A mulher que carrega o baluarte da esperança tem medo mas também tem cuidado. Ela anda nas noites de sua própria carne, sustenta seu corpo, seu íntimo, sua noite.
Breve a treva desliza nas horas, sendo sobressaltada pelO Sol. O que antes era segredo se abre entre gritos de dor, suspiros e lágrimas. Sangue e placenta deslizam pela manhã e um choro dócil ecoa pelas horas. Ao meio-dia a estrela maior contempla o mundo inteiro e as crianças que antes eram segredo e esperança já são realidade. Filhas da mulher de cabelos azuis, elas brincam livremente, se dão ao direito do toque, do afeto. Rebentos gêmeos, filhos de uma mesmA Estrela.
Texto de 8 de Junho de 2020.
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“1. Had! A manifestação de Nuit.
2. O desvelar da companhia do céu.
3. Todo homem e toda mulher é uma estrela.
4. Todo número é infinito; não há diferença.”
Liber AL vel Legis, capítulo I, versículos 1 ao 4.
8 de Abril de 1904.