Ser dois: um
Duas copas: uma só devoção. Quando imagino o Ás de Copas se metamorfoseando em dois, pressinto um trovão divino rompendo a fortaleza do amor. Para amar, primeiro precisamos estar seguros de sermos quem somos, de carregarmos um coração só nosso, de necessidades, desejos e ambições particulares. Primeiro aprendemos a ser nós mesmos para viver o outro. Ou pelo menos isso haveria de ser o certo, não? Quantas pessoas se antecipam rumo ao amor de outrem, negando o seu próprio. Renegamos nossas próprias necessidades para beber as de um cálice desconhecido.
Mas não deveríamos ter entendido primeiro o nosso próprio desejo, abraçado acima de tudo nosso coração, nossa essência e casa própria? Não, quantas vezes o alicerce do amor-próprio estava mal estabelecido e a trovoada de uma sede demoliu aquilo que pensávamos ser nós mesmos. O arrebatamento da paixão nos quebrou antes que pudéssemos ser inteiros em nós mesmos.
To be two: one. Para ser dois: um. Esquecemos a matemática. Nascemos sozinhos, morremos sozinhos, mas nesse caminho sempre só, queremos sempre o acolhimento de uma placenta onde fomos uma dupla unidade. Toda cópula é de certa forma a necessidade desta barriga de mãe, talvez a própria ideia de reencontrar a origem do divino, a gnose, a junção com a raiz integral de todas as coisas. Querer o outro é querer uma parte de si mesmo que não reside em você.
Mas talvez resida. Nós que não percebemos. Que amor proporcionaremos se não formos primeiro inteiros, íntegros, uma unidade inteira? Pra ser dois, primeiro um. Todo arrebatamento de paixão que não nos faça ser um sendo dois, não é paixão: é egoísmo. Aprendizado de primavera, de duas décadas de solidões. Tenho sido tanto tempo um que não sei o que é ser dois. Só pressinto que vivenciar um corpo que não seja meu é um estado de destruição da minha própria individualidade. É saber-me coletivo, ser desejo e desejado, ambição e ambicionado. É não me saber só apesar de saber ser um. To be two, to be once with you. Once, twice, three times a somebody. And I love you.
“Well, in my mind, we can conquer the world,
In love you and I, you and I, you and I”
(escrito escutando Stevie Wonder – You and I)