Esse texto aqui, parafraseando bem mal-parafraseada a Bíblia, vai ser um “Eu não vim trazer o refresco, eu vim trazer a pimenta nos olhos”. Porque falar sobre o mês da prevenção ao suicídio é ser acima de tudo real. Aqui não vou contar uma história bonita, não vou passar glitter, não vou tentar monetizar ou pacificar a realidade cruel de tantas pessoas, eu incluso. Aqui vocês não vão ver um “método de tiragem” sobre Setembro Amarelo ou um “tarô salva da depressão”, porque, não, a verdade é que suicídio não tem magia, não tem oráculo, não tem milagre. Suicídio é uma luta fodida, fo-di-da. E que a gente enfrenta com remédio, com terapia, se olhando no espelho e falando: apesar de tudo eu quero viver.
E às vezes a gente sequer vai acreditar nessas palavras. Pra ser sincero, eu mal acredito em Setembro Amarelo direito. Porque muita gente é mal intencionada, usa um mês como esse pra se divulgar, se colocar como figurinha de chiclete em defesa dos oprimidos, deprimidos e comprimidos. Aí no resto do ano tá nem aí pra quem tá sofrendo com distúrbios psicológicos. Em tempo de eleição um bom filho da puta desses vai e lacra o botão pra eleger políticos que acham que depressão é frescura ou “falta de Deus”. E eu quero que esse tipo de gente vá pra casa do caralho. Sim, não vou falar bonito aqui: eu vou falar a história da minha vida, sem tirar nem pôr.
Ter distúrbios psicológicos é como estar preso nA Roda da Fortuna, você não tem controle das circunstâncias, o meio externo parece sempre estar nos levando de um lado pro outro, a momentos de declínio e domínio, mas sempre subindo, descendo, sem conseguir, sem conseguir silenciar a nossa mente adoecida, porque a grande questão não é esse externo que nos leva pra lá ou pra cá, mas sim a nossa falta de centro, nossa falta de controle não sobre o de fora, mas sobre que está dentro da gente.
Quem me vê aqui, rindo, contando histórias, sendo divertido, alegre, não me vê nas crises, sem querer sair da cama, chorando convulsivamente, ameaçando minha família dizendo coisas que eu não diria se estivesse num momento bom. Quem me vê aqui, com essa máscara, com esse teatro de mostrar uma melhor versão de mim mesmo, não sabe o que é minha convulsão de lágrimas, misturada com catarro, com saliva, com auto-desprezo. Sem centro interno, a roda me leva a momentos de intensa alegria, de intenso ódio. E não há quem faça maior mal pra mim do que eu, eu mesmo.
Desde os dezessete anos, em 2016, aquele que considero meu pior ano, eu penso, penso muito. Eu tenho uma ideação condenada. Muitas vezes, andando na rua, pegando colheres na gaveta, limpando alguma coisa, escrevendo, chorando. Quantos pensamentos, nunca realizados, mas desejados como numa vontade escapista de querer fugir da dor, fugir. E aí, eu penso: desejamos a morte ou o fim da dor? Porque nisso existe uma diferença.
Quando eu estou bem, pra que eu desejaria o fim da dor? A dor não existe quando eu estou bem. A dor ou está desaparecida ou bem escondida debaixo do carpete. Pra que eu desejaria a morte? Se estou bem, abraço a vida, porque eu quero a vida, com a força e a fome de um animal que agoniza mas ainda prefere sobreviver a morrer. Porque é do nosso instinto querer viver. Eu não acredito em desejar morrer. Até quando alguém causa sua própria morte, seu corpo a maioria das vezes vai lutar pela vida. Mas a questão não é querer morrer, é querer escapar da dor.
Quando dói demais, eu penso demais nisso, na ideia absoluta de um fim. O mistério da uniformidade com a terra. Eu penso, romantizo em minha mente, escrevo textos, poemas, ideias horrendas que proliferam famintas. Porque nessas horas, só queria que a dor acabasse. Termine, termine. E então eu choro, me desespero, uma vez quase fui internado no hospital depois de uma crise. Mas a médica disse pros meus pais: é só uma crise de ansiedade. Só uma crise. Como dói isso. É só isso realmente, inquiriu minha terapeuta uma vez?
Esse tremer em lágrimas, desespero, sem ar, sem nada, gritando sem conseguir conter a mente, sem conter a sanidade, isso é só ansiedade? Ou isso é a história de toda uma vida, repleta de frustrações, medos, sendo puxado, alvitado pelas circunstâncias, como quem é afogado por marés e mais marés, batendo nas pedras, sendo soterrado pela fúria da tempestade. É só uma crise? Não. Sou eu. Vinte-um anos de angústias e circunstâncias. Mas eu estou vivo e eu quero viver, nessa luta eterna, tenho vencido. Mas quantos saem da corrida antes do tempo? Tropeçam, são atropelados pela Roda, Roda essa que, nesses casos, é mais infortúnio que Fortuna?
Porque eu, nesses mais de quatro anos contra minha própria mente, aprendi a ver padrões, a entender algumas estruturas, alguns equívocos da psique. Esse entendimento de perceber que, quando algo me fere, é como se todas as frustrações ressurgissem numa coisa só, numa massa uniforme, um efeito dominó de dó, de dor. Cada fracasso, cada derrota e tristeza trazendo a tona um sofrimento mais antigo, ocultado, empurrado pra baixo do tapete. E então o choro, e então a vontade de beijar os lábios da caveira, os lábios que mais tenho, minha taça macabra, byroniana.
Mas eu nunca pensei, amizades, nunca pensei que hoje, aos meus vinte e um, eu estaria vivo assim, feliz, satisfeito. Porque por mais que ainda hoje dores me persigam, angústias me tomem de sobressalto num tumulto de ansiedades, eu finalmente tenho acreditado em mim, tenho tido uma certa fé misteriosa em meu futuro. E tudo isso é um trabalho diário, constante, de entender o que sou, o que são minhas dores, minhas carências. Trabalho que comecei aos dezessete, com terapia, com medicações, quantas medicações até eu chegar na que tem me atado o diabo. Quantos terapeutas até ter encontrado a pessoa certa que me ajeitou bastante o tico e o teco.
Eu só posso dizer, a quem sofre como eu, que procure por terapia, que procure por remédios. Talvez os primeiros não vão resolver, talvez primeiro será um perrengue, mas quando você encontra a terapeuta certa, o remédio certo, é um salvamento, é como se num milagre. A gente vai e recupera o centramento, para de ficar sendo sempre levado pela Roda. É um recuperar a fé no futuro. Porque o meu eu de dezessete anos jamais acreditaria que hoje estou vivo, que hoje tenho fé no porvir, que tenho esperanças, particulares esperanças. Mas tudo isso foi acima de tudo um processo, foi um procurar por auxílio. Porque não existe maior força do que procurar ajuda na fraqueza. Há quem pense que pedir ajuda é covardia, mas na verdade, não há maior ato de coragem. Faça terapia, procure uma medicação adequada. Ligue pro 188.
(Texto de 12 de Setembro de 2020)
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