Para começar nossa empreitada, O Louco nos aponta As Trilhas Longínquas de Oku do velho Matsuo Bashô, o lendário mestre do haikai. Na talvez mais famosa obra de sua lavra, o haikaísta samurai-monge começa uma longa viagem junto ao seu amigo e aprendiz Sora, onde levados pela sorte trilham vários locais da Japão feudal, nisso encontrando as mais plurais formas de beleza e simplicidade, dormindo cada dia numa casa diferente, encontrando pessoas e naturezas ímpares e escrevendo muito haicais, muitos, diversos.
Esse andar sob o abraço da sorte pra mim é coisa de Louco, é o senso de aventura, um desalento que não carrega assombro, somente a beleza de em cada canto ver algo novo, confrontar tudo com coração. Muitas vezes a dupla de poetas teme os perigos das estradas, as doenças, os infortúnios que perambulam, mas ainda assim seguem seu caminho com alegria. Por vezes as dores da idade e o medo de Bashô o assombram, ele chega teme pela própria vida, bate um quê de Eremita, mas então ele vê alguma árvore, uma montanha ou lago e pronto: mais três versos, 5-7-5 a estrutura, lágrimas de emoção.
É uma trama de sortes, de pessoas simples que acolhem nossos caminhantes, de muita história e alusões ao folclore e mística nipônicas. Quantos templos, quantos riachos, quantos caminhos o sábio poeta encontrou em seu caminho, jamais saberemos ao certo, nisso reside certo fascínio e mistério que só a loucura pode nos dizer. Seu livro, por mais que narre toda a jornada, carrega em sua prosa a simplicidade do arcano sem começo nem fim, dizendo tudo e ao mesmo tempo nada. Abracemos o abismo dos poemas triversados:
“Rendo graças ao lugar!
há aroma de neve no vento,
no vale do sul.”
“A mais que excelente história do Mercador de Veneza”
Nada melhor para representar O Mago que uma peça de teatro, logo ele que vive esse eterno papel de criar mentiras mais reais que a própria verdade. E ainda melhor que seja uma mentira saída das mãos do Bardo. Shakespeare é conhecido acima de tudo por suas tragédias mas a sua tragicomédia dO Mercador de Veneza é quiçá uma de suas obras mais polêmicas e estudadas. E por onde começar essa brincadeira de semelhança entre arcano e obra?
Veneza, Itália, um dos corações da renascença, um dos locais onde o jogo das setentoito lâminas fez-se marcante. E nesse cenário temos Antônio, o mercador da trama. O arcano I é um mercador, ele tem sua mesinha, ele vende suas mentiras com sabor de verdade, seu espetáculo, sua pantomima. E este homem, nosso veneziano, não vende mentiras, mas procura um empréstimo. E aí surge a figura de Shylock, o judeu usureiro. Aí reside a polêmica da trama, visto o enorme preconceito sofrido por judeus naquele período histórico.
Como qualquer obra do gênio inglês, os diálogos tem o primor da ambiguidade, seus duplos sentidos e ironias inerentes desse processo. Se o Mágico carrega a lábia, Shakespeare (e Shylock) também a tem. O vilão, odiando o antissemitismo de Antônio, promete lhe emprestar seus ducados desde que, não pagando o que for devido a tempo, nosso protagonista lhe devauma libra de sua própria carne. Cruel, mas ainda empréstimo, e tomar risco é o que o “Mágico” Antônio faz. E adivinha quem fica devendo uma libra da própria carne?
Mas temos uma tragicomédia, aqui não é Hamlet, as coisas são mais divertidas do que terríveis, vocês acham mesmo que o primeiro arcano faria coisas horrendas sem esperar um riso? Temos a trama de Pórcia e seus pretendentes, a charada dos três cofres. Temos mulheres se disfarçando de homens, o que naquele caso era bem diferenciado porque não haviam atrizes então os atores faziam papéis femininos e nesse caso depois faziam papéis masculinos. Jogo de cena, charada, disfarce, tudo é espetáculo quando nosso arcano teatral põe sua mesinha em cena.
Nesta peça shakespeariana e engenhosa, tudo quanto é palavra, dito, trato e desfeita é usado como mecanismo do enredo e mecanismo da comédia. O nosso mercador de Veneza perderá a carne ou sairá impune? Shylock receberá seu devido ‘bife”? Bem, só na magia de ler pra se descobrir. E pra rir, bastante rir.
O Espelho das Almas Simples e aniquiladas e que permanecem somente no desejo e na vontade do Amor. Ou, sejamos simples como essas almas: O Espelho das Almas Simples. Esse livro é a Papisa porque a autora por si só era. Marguerite Porete foi uma figura misteriosa do misticismo francês. De história pouco conhecida até hoje, ela foi parte das beguinas, mulheres católicas que praticavam uma vida ascética em grupos. Não eram freiras como se pode supor, mas sim um grupo de figuras femininas que praticavam obras de fé e caridade com certa autonomia que muitas vezes colocava a Igreja de olho em suas ações.
A Papisa, arcano que subverte o papel masculino nos dogmas crísticos, não seria ela de certa forma um espelhamento desse conjunto de mulheres misticamente subversivas do qual nossa autora fez parte? E a própria Porete não seria uma figura “papísica”, que, devotada a sua fé em Deus, se colocou contra a própria estrutura clerical, escrevendo um livro que a condenou a fogueira como herege? Porque a Papisa é isto: a carta que, prezando Deus no seu íntimo, renega a ideia de Deus numa estrutura maior, mesmo que nisso resida um sacrifício que pode culminar em sua própria destruição.
Negar o Deus da igreja para viver o Deus do coração: c’est La Papesse. Marguerite Porete foi o primeiro caso de condenação por heresia na França. Seu livro que defendeu tão ferrenhamente foi a própria causa de seu martírio. E a própria segunda arcana tem em mãos um livro, carregando nele este saber das coisas eternas e sorrindo um sorriso todo segredo, hermético e místico.
O Espelho das Almas Simples é um livro não-tão simples. Em uma narrativa alegórica onde protagonizam a Alma e o Amor se contrapondo ao antagonismo da Razão, as duas provam a partir de várias reflexões místicas com alegorias tanto crísticas quanto herméticas e astrológicas a necessidade da plena devoção ao divino, devoção esta ao ponto de subjugar a própria existência, incinerando a essência do ser para que só caiba o Amor divino, este que, de tão enorme, torna o ser num nada frente ao amor cortês de Deus. Se este amor não está na Papisa, que se devota a sua fé para além dos desejos, está em quem? Marguerite Porete, da forma que era, soube a que ponto é preciso se devotar. E ardeu por isso. Por Deus, ardeu.