O Sol, o Diabo e Os Enamorados, cartas tão dissonantes mas que carregam similaridades. Nas três residem casais, respectivamente dois gêmeos, dois pecadores e os jovens apaixonados. Nessas duplas me vem a mente questões de afeto que ecoam nas cartas, formas divergentes de amor.
Afinal, são três cartas que carregam em si a ideia de lidar com o outro que já se manifesta por si só na disposição das figuras. Acima das duplas sempre paira algo que os influencia: o sol, o diabo e o cupido. E sob a influência dessas forças se fundamentam suas uniões.
Mas nas três residem formas de amor particulares e que eu vejo essencialmente como algo que transita o sagrado (O Sol), o profano (Diabo) e o intermediário dessas duas formas: o humano (Enamorados). O Sol é o amor sagrado por trazer o dia e a clareza ao mundo, sendo reflexo microcósmico da luz divina que desperta os seres viventes. Os gêmeos são a representação de pessoas que se veem como iguais, um claro símbolo de fraternidade e amizade. Aqui há pureza e boas intenções.
Difere do amor profano dO Diabo, onde os pecadores metamorfoseados em demônios estão atados ao peso vermelho de seus desejos, do instinto de sobrevivência, suas necessidades primitivas. Aqui temos o amor sexual, a lascívia e o desejo de posse. Aqui a semelhança se faz no apetite.
Não necessariamente o amor solar e diabólico são plena bondade e maldade, simplesmente são expressões do amor. É preciso ver as pessoas como iguais tanto na sua faceta divina quanto a profana. Precisamos tanto de amizade quanto do gozo, ambos fazem parte da vida e suas expressões.
O que não se pode é ver o próximo com tal igualdade ao ponto de esquecer que por mais que sejamos todos humanos, cada qual tem suas necessidades e questões particulares que só cabem ao indivíduo. Também não podemos abraçar nossas pulsões ao ponto delas sufocarem o outro.
Nisto, acho, surge o amor humano, Os Enamorados. Nele temos o casal que, podendo explorar tanto o sagrado quanto o profano, decide atrelar em si os dois, podendo decidir ora por um, ora por outro. Não a toa é uma carta que tanto envolve decisão. É um matrimônio, um contrato.
O Sol pode trazer luz ao mundo e o Diabo ser o pai da persuasão, mas o Cupido do Arcano VI precisa decidir para onde aponta a flecha, quiçá sabe se acertará. Na hora do casamento, só existe o sim e o não, um destino que se consuma ou nega-se. Nisto o amor se faz uma escolha.
O amor aqui se manifesta com a liberdade da escolha porque o casal está junto mas sabe ter suas diferenças, é consciente dos desejos e do seu sagrado, eles só precisam decidir se abarcam por fim o amor que carregam um pelo outro. É o kairos, momento de decisão, oportunidade.
Diferente de cronos, o tempo limitado, contabilizado, kairos é um momento onde o tempo se torna disforme e subjetivo, é a hora onde a ação precisa ser decidida, podendo trazer glória ou ruína a partir da escolha. Quando conhecemos o amor sagrado e o profano, o que abraçamos?
"In trutina mentis dubia
Fluctuant contraria
Lascivus amor et pudicitia
Sed eligo quod video
Collum iugo prebeo
Ad iugum tamen suave transeo"
"Na balança de minha alma
Oscilam como pesos contrários
O amor lascivo e o recatado.
Mas eu escolho o que reconheço
E ofereço meu pescoço ao jugo:
Mas ao jugo entrego-me docilmente."
(Carmina Burana, Cours D'Amour: In Trutina)
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