Não acho que o Diabo more nos detalhes. Ele não se importa o suficiente com detalhes pra isso. O detalhe só lhe cabe se nele reside um benefício, uma possibilidade de ganhar uma alma nova, triunfar contra a majestade de Deus. A Justiça escreve a lei, o Diabo criou as letras pequenas do contrato. É o pai do rock, é o pai do pop, é o pai da música de corno. Mas é ele quem chifra. Se o Mago cria uma mentira, o Diabo transforma a mentira numa multinacional. O Diabo se candidata a presidência em nome de Deus.
Quão articulada pode ser a malícia, não é? Vender o torto pelo preço do direito sempre rende. O Diabo nunca pensa que fim vai dar as tranqueiras que ele faz. Que importa o fim se ele próprio está e é dono do inferno? E então virão os homens de terno, os homens de batina, os homens da cátedra questionar a origem do mal. E Lúcifer, a estrela da manhã, responderá a Morfeus de maneira ferina:
“Por que me culpam por suas pequenas falhas? Eles usam meu nome como se passasse dias inteiros em seus ombros, forçando eles a cometer atos que de outra forma achariam repulsivos. “O demônio me fez isso.” Eu nunca fiz ninguém fazer coisa alguma. Nunca. Eles vivem suas próprias vidas insignificantes. Eu não vivo por eles.” *
O inferno é coletivo. Estamos todos lá. Porque o inferno não é os outros. O inferno é um conjunto de particularidades. Cada pedra que arremessamos em nosso semelhante ergue o castelo de betume. O Diabo é só o rememorar do que sucede a quem tenta transgredir as leis celestiais. O maior pecado no inferno de Dante era trair seu próprio senhor. Quantas vezes nos traímos com vícios, vaidades, futilidades? Quantas vezes colocamos o outro como brinquedo de nossas vontades, como objeto de nosso utilitarismo?
Melhor reinar no inferno do que servir no céu, eis a didática diabólica, Milton explica. E realmente, quantas vezes o inferno não desperta édens? Sem o Diabo, onde estaria a violência que move uma revolução? Fraquejaria o injustiçado no silêncio. Sem o cramunhão, que seria do tesão, pai de tudo quanto é desvario? Sequer gozariamos, eternos celibatários. Sem o mal, que moral teria o bem?
Deus criou o mal? - questiona ferino o diabrete. O que é o mal se não uma relatividade, poderíamos questionar. A Justiça dirá que todas as coisas tem a mesma medida, mas a violência do oprimido é tal qual a do opressor? A mão que afaga é a mesma que apedreja**, ensina o pai da mentira. Que há no homem uma necessidade que precede qualquer benevolência e beatitude: o instinto de sobrevivência.
Um avião cai, os suprimentos acabam, um cadáver está preservado no gelo. Os famintos jejuariam até o resgate chegar ou com o passar das semanas ceariam aquela carne outrora semelhante? O Diabo sempre evoca a moral para dar a língua pra ela, abaixar as calças, mostrar seu orgulhoso falo, exibir seus pomposos seios. Se os homens fossem todos santos, não estaríamos aqui pra contar essa história. Há sempre Malkuth para espelhar Kether. Há sempre males que vem para bem.
O Diabo joga nossas morais pro lixo, faz uma orgia em praça pública. Bebe catuaba montado num cavalo. Expõe que o homem é o pior no homem. Mas lembra a nós também sua origem divina. Só cai quem se dá ao luxo de rejeitar o certo pelo certo. Mas aqui, mais uma armadilha do homem-chifre: até que ponto podemos ser sagrados sem se dar ao luxo de acender um archote? Às vezes é mais que necessário apagar fogo com gasolina. Lutar o injusto com o ainda pior.
Quando um jogo já começa sem as regras serem obedecidas, cabe a nós descumprir sempre que necessário. E o Diabo ensina o momento de burlar o que já foi burlado. Eis o grande agente mágico. Eis o pantomimeiro do desejo.
* Sandman: Estação das Brumas
** Versos íntimos, Augusto dos Anjos
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